Bom, qual é o propósito, então, de vos contar um pouco da história do hip hop? Pretendo, simplesmente, sugerir uma reflexão geral sobre o sentido – dito “crítico” – da música de Azagaia. Em outras palavras, quero levantar questões sobre a realidade a que a música de Azagaia nos dá acesso, ou se quiserem questiona. Que realidade descreve e como faz essa descrição? É uma maneira razoável de nos apresentar uma leitura da realidade, digamos, político-social do nosso país? Estamos de acordo com os termos da leitura? Descreve e documenta essa realidade da “melhor” maneira possível? As conclusões talvez sejam o menos interessante debater, mas como se seja a essas conclusões parece um aspecto fundamental que a nossa espera pública não devia descurar. Azagaia, nas suas músicas, sugere que a realidade política e social do nosso país apresenta-se de um certa maneira. Concordamos com essa descrição? É sobre isso que este artigo trata.
REALIDADE VS. CONHECIMENTO DA REALIDADE DO PAÍS
Sem grandes recursos teóricos, e de forma algo leiga e bem generalista, gostaria de sugerir que existe:
a) por um lado, a realidade (social) do país e;
b) por outro lado, o conhecimento da realidade (social) do país.
Tanto uma como outra são em parte produto das nossas acções, portanto passíveis de tomarem forma e conteúdo possíveis e ainda não realizados. Quer dizer, a realidade do nosso país e o conhecimento dessa realidade podem estar sujeitos a nossa intervenção para tomarem formas e conteúdos específicos. O espaço público, a política, através do debate de ideias, é onde nós podemos negociar – democraticamente, em princípio – os vários futuros possíveis e “desejáveis”. O debate de ideias é, portanto, constitutivo e constituinte da sociedade que fomos, somos e podemos vir a ser. Podemos dizer, então e hipoteticamente, que em função da abertura que tive(r)mos para o debate de ideia fomos e podemos ser uma sociedade autoritária (fechada) ou democrática (aberta), para colocar as coisas entre extremos. O desafio que se nos coloca todos os dias é saber para que lado tendemos e queremos tender. Como e o que fazemos para evitar os inimigos da sociedade aberta, se esta for o nosso desiderato. De novo o próprio debate é chamado como instrumento não só para medir essa tendência, como para destruir os inimigos da sociedade aberta. Tudo isto é para dizer que enquanto sociedade temos que saber debater. Debater, aqui, significa saber avaliar argumentos. O conhecimento que temos da realidade do nosso país depende, portanto, fundamentalmente, da capacidade que temos de avaliar argumentos nas suas diversas maneiras de se apresentar. Se nos dizem, por exemplo, que o nosso país é pobre. Estão basicamente a oferecer-nos uma conclusão. Para sabermos se essa conclusão é plausível temos que avaliar as razões (premissas) que se nos oferecem para tirar tal conclusão (voltarei a este assunto mais adiante). Não podemos é a aceitar que nos digam é pobre porque é pobre e pronto! A maneira como avaliamos esta conclusão e suas premissas vai nos dizer muito sobre o que sabemos do nosso país. Podemos então questionarmo-nos sobre os modos de produção de conhecimento dessa realidade e sobre a validade do conhecimento que produzimos.
Neste sentido “verdade” ou conhecimento verdadeiro seria aquele conhecimento que apresentasse razões plausíveis para as conclusões que descrevem o estado do nosso país. Quanto mais fidedignas as razões (premissas) mas fortes as conclusões e o conhecimento que temos do país. O conhecimento seria, portanto, apenas a representação dessa realidade. Podemos imaginar que o trabalho de buscar representações fiéis, conhecimento “verdadeiro”, do país, isto é, o mais próximo possível da realidade “real” deve ser penoso pelo tempo, recursos que requer e, não só, como pela própria complexidade dos fenómenos que fazem essa realidade.
Pessoas sem tempo e as vezes sem recursos, grosso modo, aceitam as conclusões, i.é, as representações da realidade do país que se lhes apresentam sem questionar as premissas que sustentam essas conclusões. E depois há daquelas coisas que mesmo não sabendo não impedem que a gente leve uma vida normal. Há mais de 20 anos que não sabemos se o primeiro presidente morreu assassinado ou se o acidente foi mesmo acidente e nem por isso deixamos de viver. Há pessoas que se especializam na busca de explicações para as diferentes dúvidas que temos de vários fenómenos que fazem – e ocorrem n(a) - nossa sociedade. Os cientistas, por exemplo, de modo geral, são os especialistas que se ocupam da produção dessas representações aproximativas da realidade. São avaliadores de premissas. Mas os cientistas não são os únicos, existem outros com diferentes níveis de especialidade.
Os músicos, por exemplo, também interpretam a realidade para aqueles que não têm muito tempo e paciência para tal. Quer dizer, procuram nas suas músicas formular perguntas e dar respostas, de forma artística, que nos dizem como é a realidade. E alguns de nós servimo-nos desse conhecimento para orientar nossas acções. A pergunta que se pode colocar é: até que ponto estamos satisfeitos com o rigor do conhecimento que algumas leituras (musicais) nos apresentam da nossa realidade? As conclusões, interpretativas, a que essas leituras de como a realidade se apresenta são plausíveis para podermos orientar nossas acções a partir delas? As premissas sob as quais assentam essas conclusões não são discutíveis? Questionáveis? Que estatuto essa descrição da realidade reclama? É o estatuto que lhe compete? Enfim, vamos pensar sobre algumas destas questões a partir das letras das músicas de Azagaia. Atenção! A intenção, fique claro, não é avaliar o mérito e a criatividade artística de Azagaia que para isso não tenho competência. Quem fizer isso, fá-lo por conta e risco próprio. A intenção é olhar para a música de Azagaia como um artefacto da nossa sociedade, uma representação da realidade e que, por isso, pode ser analisado, estudado independentemente das motivações. Que realidade e que conhecimento da realidade do país as músicas de Azagaia nos proporcionam?
A VERDADE DAS MENTIRAS
“As mentiras da verdade” foi a primeira música de Azagaia. Fez e ainda faz muito sucesso de audiência. Recentemente, Azagaia, voltou à carga com uma segunda música, “A Marcha”, que também está arrastar multidões. Na efervescência do sucesso Azagaia lançou, a 10 de Novembro, o seu primeiro álbum, “Babalaze” (ressaca, traduzido para o português). Não me parece que por detrás do sucesso de Azagaia esteja apenas o facto de cantar o hip hop. Nesse género musical muitos outros jovens cantores já o haviam antecedido. Com um aderência massiva, a música de Azagaia surge pelo conteúdo forte, diga-se pelas conclusões fortes, das suas mensagens.
Um conteúdo que aos ouvidos de muitos é de intervenção e crítica social. Azagaia é, portanto, visto como aquele jovem músico que diz a “verdade” tal e qual ela é. Desnuda-a! E como essa “verdade”, alguns acham, não é conveniente para um sector da sociedade moçambicana, revelá-la publicamente, e de forma desinibida através do rap, torna-se um acto de “coragem”. Na verdade, Azagaia, como ele próprio reconhece, não inventa nada do que diz, apenas faz eco daquilo que as pessoas dizem nas esquinas e corredores, portanto, ao conhecimento popular. Aquele conhecimento daqueles que não têm tempo nem paciência para conviver com a dúvida enquanto avaliam as premissas. É um conhecimento do senso comum, portanto, apriorístico, intuitivo, assistemático. Na verdade, é um não-conhecimento, ou melhor é desconhecimento. Azagaia não faz perguntas, dá respostas. E as respostas que nos oferece, não são respostas novas. São respostas que já eram do domínio de toda gente, do senso comum. São essas respostas que estão a reclamar, agora que ritmadas, um estatuto diferente. O estatuto de verdade! Azagaia é aquele jovem cujas músicas nos dizem “verdades”, é assim que muitos o retratam! A sua atitude, portanto, é de intervenção e crítica social, consideram. Uma critica social que é vista como um acto corajoso, asseveram. Este artigo questiona esse estatuto de “verdade” das músicas de Azagaia. Até que ponto as suas respostas, as conclusões, são baseadas em premissas plausíveis, fidedignas? O que é, mesmo, música de intervenção social e/ou crítica social? Que características temos que lhes reconhecer para a consideramos como tal? O que está a ser analisado é o que faz do conteúdo da música de Azagaia crítica social e reveladora da “verdade”!
Poderão confirmar esse artigo nesse link
“AS VERDADES DA MENTIRA”: Do senso comum ao eclipse da razão (1), ou ainda adquirir esse jornal nas bancas habituais.
Outro artigo anteriormente publicado por esse jornal sobre o rapper aqui... Crítica social e desabafo.